Guia ilustrado de graffiti e quadrinhos


Proposta de uma viagem pelos quadrinhos e graffiti
O Guia Ilustrado de graffiti e quadrinhos propõe, através de 4 ensaios, um passeio pelos quadrinhos e graffiti modernos, passando pelos seus antecedentes que remontam à pré-história, e por suas diferentes manifestações até atingirem a forma atual, mostrando que essas linguagens podem ser vistas em vários momentos e em diferentes civilizações de maneiras diversas até adquirirem a configuração contemporânea.


foto Piero Bagnariol
Mitograma, de uma pintura rupestre realizada há cerca de 6000 anos em Pedra Pintada, perto da Vila de Cocais, na Serrada Conceição (MG). Na imagem, as silhuetas monocrômicas distinguem-se das figuras desenhadas apenas por uma linha de contorno. Uma série esquemática de pontos e traços complementa a composição, expressando conceitos abstratos. Os desenhos pertencem à chamada ‘tradição planalto’, e constituem um dos muitos exemplos de arte rupestre do Brasil.


Memória em duas dimensões

Os grafites e as histórias em quadrinhos são duas linguagens da era moderna: a palavra graffiti é empregada para indicar as inscrições com spray e látex no espaço urbano, enquanto o termo quadrinhos é associado à produção e à publicação de narrativas visuais. Ligadas principalmente ao universo dos jovens, estas linguagens combinam texto e imagem num único suporte, utilizando técnicas e conceitos enraizados na própria história da humanidade.
Desde 30-40.000 anos atrás, na pré-história, o homem realiza pinturas e incisões em grutas e rochedos. Os arqueólogos chamam estas imagens de mitogramas: manifestações gráficas cujo sentido não está sujeito a uma leitura linear, mas sim à "condensação e justaposição de contextos", como o desenho e a escrita, "que na lógica dual e analítica usualmente diferenciamos" 1. Essas inscrições não constituem propriamente uma narrativa ilustrada, assim como entendemos hoje esse termo, mas já combinam signos e figuras num único contexto. Os primeiros expressam conceitos abstratos, enquanto os outros buscam uma representação da realidade.
Nos rituais dos povos caçadores, esses traçados e grafismos precedem a invenção da escrita, acompanham a narração oral e a encenação dos mitos. Apesar de pertencer ao mundo sensível, o desenho não é completamente real nem completamente etéreo, colocando-se portanto como uma janela sobre o mundo da imaginação. Ao projetar imagens sobre uma superfície plana, o ser humano exprime seu próprio universo interior. Tornando-se criador de formas, ele pode conhecer e enxergar a si mesmo.
Com a elaboração de símbolos, o homem consegue em seguida registrar seu pensamento de maneira mais inteligível. Devido à sua faculdade de comunicar informações complexas à distância e no tempo, estes signos contribuíram para a aglomeração dos seres humanos.
O que pretendemos fazer aqui é esboçar uma proto-história do graffiti e da história em quadrinhos, seguindo o rastro dos elementos que hoje caracterizam estas duas linguagens.



1. Os Caçadores

Há pelo menos 35.000 anos os povos caçadores pintaram ou gravaram desenhos sobre ossos e pedras em diferentes lugares do mundo. A princípio eram signos estilizados, como aqueles contidos no osso de Blanchart, que sugere algum tipo de dispositivo rítmico, talvez as fases da lua. Por meio destas marcas o homem estaria representando um conceito abstrato, neste caso a passagem do tempo. As silhuetas de animais e homens, os desenhos propriamente ditos, apareceram talvez num segundo momento. Hoje não podemos afirmar com precisão que o grafismo se desenvolveu assim. De maneira geral, a idéia de que o "realismo intelectual" dos símbolos precede o "realismo visual" dos desenhos, parece a mais plausível 2. Uma criança de dois ou três anos não teria dúvidas em afirmar que o rabisco que acaba de fazer é uma casa, ou a mamãe. A produção de traços abstratos, para representar a idéia que temos das coisas, seria uma etapa que antecede a capacidade de reproduzir um objeto como ele é.

Para entender o que levou o homem a desenvolver esta habilidade, podemos imaginar ainda um estágio anterior a estes dois, no qual não há intenções representativas, mas apenas o puro desejo de se manifestar. Neste sentido, por trás da produção de desenhos haveria algo ainda mais vital para o homem, uma espécie de "pulsação do corpo". Esta hipótese foi sugerida ainda em 1958 pelo abade Henri Breuil, um dos primeiros estudiosos das pinturas realizadas pelos caçadores do período paleolítico (do grego paléos, antigo e litós, pedra: idade da pedra antiga, entre 35.000 e 10.000 anos atrás). Breuil dedicaria mais de 50 anos de sua vida às imagens que chamamos de pinturas rupestres, realizando um imenso registro de croquis e desenhos.

Descobertas em 1879, as pinturas da gruta de Altamira (Espanha) revolucionaram a concepção que até então se tinha dos homens do paleolítico. Num primeiro momento, a tese de que estas obras de arte pudessem ter sido realizadas por povos ‘primitivos’ foi recebida, segundo o escritor Jacques Bergier 3, com “homérica gargalhada” pelos especialistas. Vinte anos depois, os estudos de Breuil ajudariam a confirmar a autenticidade das obras bem como a habilidade dos nossos antepassados. As imagens, que em sua maioria retratam de maneira detalhada cavalos e bovinos, se apresentam sobrepostas umas às outras em camadas realizadas em épocas diferentes. Comparando as afinidades técnicas e estilísticas dos trabalhos, o abade definiu sua cronologia. A produção de pinturas, incisões e grafites (gravuras obtidas raspando a superfície da pedra) partiu de formas estilizadas e progrediu, em diversas etapas, para figuras cada vez mais realísticas e detalhadas.

(continua...)